Em decorrência da inclusão do café no Programa de Alimentação Escolar, o CFN solicitou um parecer técnico sobre o assunto, o qual transcrevemos a seguir. O parecer foi elaborado pelo professor Carlos Alberto Bastos de Maria, e vem corroborar com argumentos técnicos a opinião defendida por este Conselho Federal.

Como nutricionistas, recomendamos para a alimentação humana apenas substâncias que contribuam na composição de elementos favoráveis à saúde. No caso do grupo de pessoas na faixa etária escolar, caracterizada pelo desenvolvimento orgânico e metabólico, reconhecemos a necessidade de utilização de critérios especiais na seleção dos alimentos a serem oferecidos, de forma que os substratos estejam permanentemente disponíveis a partir de uma alimentação equilibrada.
Trabalhos publicados apontam que o rendimento escolar está diretamente relacionado com o estado fisiológico da criança e este é 1’determinado pelas condições físico-psicológicas, que dentre os quais a alimentação tem grande responsabilidade.
Nesta consideração, o CFN apresenta posicionamento contrário à inclusão de alimentos que não contribuam efetivamente para a saúde do escolar no planejamento alimentar seja domiciliar ou institucional, dentre estes, o café.

EFEITOS DA INGESTÃO DO CAFÉ NO ORGANISMO HUMANO, ESPECIALMENTE POR CRIANÇAS EM IDADE PRÉ-ESCOLAR

A inclusão de um gênero alimentício na merenda escolar é norteada pelo seu valor nutricional e pelo seu efeito fisiológico no organismo. São esses dois aspectos que serão abordados neste parecer!
A bebida de café é um extrato aquoso onde o teor de lipídios é desprezível. Devido a sua natureza hidrofóbica, os lipídios são muito pouco solúveis em água. O principal polissacarídio de reserva do café é uma hemicelulose (ex. manana) não digerível pelas enzimas do trato gastrointestinal1. Em contrapartida, somente uma quantidade ínfima de amido é encontrada no café verde (não processado). Durante a torrefação, essa pequeníssima quantidade de amido é degradada e, portanto, esse polissacarídio não é detectado na bebida genuína de café. A sacarose é o glicídio simples majoritário no café verde perfazendo ao redor de 2-8 g%2. Durante o processamento tecnológico somente de 1% a 5% da sacarose original é detectada no café. Por conseguinte, somente traços da sacarose é detectado na bebida genuína de café. Os monossacarídios são encontrados principalmente na bebida de café solúvel, alcançando entre 2-6 g%3. A frutose, a galactose, a manose, a glicose, e a arabinose são os principais representantes deste grupo de glicídios. Portanto, uma xícara da bebida (valor teórico de 10 g café/200 mL água) forneceria cerca de 2-3 Kcal, considerando apenas lipídios e glicídios. O café verde contém cerca de 8-14 g% de protídios, porém a distribuição dos aminoácidos é desproporcional4. O ácido glutâmico representa 20 % do total de aminoácidos, enquanto a metionina apenas 1 %. O café verde não é uma fonte adequada de proteínas devido ao conteúdo baixo de aminoácidos essenciais, sendo o triptofano o principal aminoácido limitante. Alguns estudos realizados com cobaias têm demonstrado que os parâmetros digestibilidade e utilização de proteína líquida são inadequados para a proteína do café5. Portanto, esta proteína é de valor biológico baixo. Uma xícara da bebida contém cerca de 0,06-0,6 g de protídios, representando 0,25-2,5 % da RDA americana para crianças na idade pré-escolar6. O processamento tecnológico reduz acentuadamente o nível de aminoácidos essenciais, especialmente a lisina, devido a reação de “Maillard”, diminuindo ainda mais a qualidade da proteína. Consequentemente, a bebida de café é uma fonte muito pobre de energia e proteína.
O conteúdo de cinzas (minerais) no café processado varia de 3 a 5 g%7. O potássio representa 40 % do total, enquanto o cálcio e o magnésio juntos perfazem cerca de 20 % do total. Os metais de transição como o cobre, o ferro e o zinco são encontrados em quantidades muito baixas ao redor de 20, 70 e 20 ppm, respectivamente. A bebida de café contém agentes quelantes de metais essenciais para o metabolismo humano8,9. A presença de ácido cítrico e de melanoidinas (pigmentos formados durante a torrefação), na bebida de café, contribui para a redução da absorção de zinco, de cobre e de ferro. Portanto, o consumo da bebida reduz a biodisponibilidade desses minerais. Alguns estudos realizados com animais e seres humanos indicam que o consumo de café aumenta a excreção de cálcio em função do alto teor de cafeína. Existe uma estimativa de que o consumo de aproximadamente 6 xícaras de café seria responsável pela perda de 4,6 mg de cálcio10. A bebida de café contém somente traços de vitaminas lipossolúveis. O tocoferol (vit. E) e a filoquinona (vit. K) apresentam valores de 7 g e 0,03 g/ 100 mL de bebida, respectivamente11,12. Em relação as vitaminas hidrossolúveis, o conteúdo também é muito baixo, exceto para niacina. Cerca de 0,6 mg de niacina é detectada em uma xícara de café representando aproximadamente 5 % da RDA americana para crianças em idade pré-escolar13. Numa dieta bem balanceada, as necessidades nutricionais de niacina são naturalmente alcançadas pela ingestão de alimentos com alto teor de niacina ou triptofano. Consequentemente, a bebida de café é uma fonte inadequada de micronutrientes.
Alguns efeitos fisiológicos, observados em animais e humanos e em estudos “in vitro”, são associados a presença de grande quantidade de compostos fenólicos e de cafeína na bebida de café. O ácido clorogênico (ACG) representa uma família de compostos fenólicos, cujo componente majoritário é o ácido cafeoilquínico (5-ACQ), presente em grande quantidade na bebida14. O principal efeito fisiológico do 5-ACQ é a sua atividade antioxidante, particularmente do seu produto de hidrólise: o ácido caféico. A observação de que o 5-ACQ reduz a peroxidação de hemácias em ratos, a oxidação da LDL e a formação de nitrosaminas (agentes cancerígenos) “in vitro” são evidências de sua capacidade antioxidativa15-17. Além disso, esse ácido é capaz de inibir a resposta inflamatória mediada por citocinas18. Em contrapartida, o 5-ACQ inibe a ação enzimática de -amilases, tripsina e lisozima19. Por sua vez, os produtos derivados de sua oxidação reduzem a biodisponibilidade de aminoácidos, especialmente a lisina20. Já o consumo de 5-ACQ em quantidades encontradas na bebida de café, aumentaria os níveis de homocisteína no plasma de humanos21. Esse aminoácido não protéico é um dos fatores de risco para o surgimento de doenças cardiovasculares. Essa variedade de efeitos fisiológicos benéficos e maléficos atribuída ao ACG, preponderantemente ao 5-ACQ, certamente é dose-dependente. Os estudos que relacionam a ingestão diária de ACG e seus efeitos fisiológicos são escassos. Portanto, atribuir-se um efeito benéfico ao consumo da bebida de café, em razão do alto teor de ACG, é de fato uma atitude precipitada, particularmente se o grupo de consumidores é composto basicamente de crianças em idade pré-escolar.
A cafeína é um alcalóide presente em grande quantidade na bebida de café. Uma xícara de café pode conter ao redor de 50-80 mg de cafeína22. Seus efeitos fisiológicos são variados e às vezes conflitantes. Sua associação com o efeito hipercolesterolêmico da bebida de café é citada em alguns trabalhos, porém não em outros23-25. Seu efeito estimulante do sistema nervoso central (SNC) tem sido associado ao recrudescimento da capacidade de memorização, de aprendizagem e de atividade motora26. A memorização a longo prazo seria positiva, porém nenhum efeito claro é observado na memória a curto prazo. Contrariamente, o consumo contínuo da bebida reduz a qualidade do sono, bem como a produção de melatonina (hormônio responsável pela sincronização do sono)27. Além disso, aumenta a secreção ácida estomacal, eleva a pressão arterial, estimula a irritabilidade e pode causar taquicardia28. O consumo contínuo de cafeína parece causar enxaqueca crônica29. Uma alimentação equilibrada promove respostas comportamentais satisfatórias, sem ocasionar efeitos fisiológicos indesejáveis no SNC.
Este é o parecer!

Conclusão:
Do ponto de vista nutricional, não existe uma razão plausível para a incorporação da bebida de café à merenda de crianças em idade pré-escolar. No que diz respeito aos efeitos fisiológicos, as evidências científicas são preliminares e/ou conflitantes e, também neste caso, deve ser evitada a inclusão da bebida de café na merenda deste grupo populacional.

Referências:
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Prof. Dr. Carlos Alberto Bastos De Maria
Laboratório de Química de Alimentos
Disciplina Bioquímica
Departamento de Ciências Fisiológicas
Instituto Biomédico, UNIRIO